sexta-feira, 2 de março de 2012

Fé em Deus e religião para Darwin

Trecho completo:

 "Não existe prova de que o homem originariamente fosse dotado da nobre fé na existência de um Deus onipotente. Pelo contrário, existe ampla prova, fornecida não por viajantes ocasionais, mas por homens que residiram por muito tempo entre os selvagens, de que exis­tiram numerosas raças, e ainda existem, as quais não têm ideia de um ou de mais deuses, e que em sua língua não têm palavras para exprimir esta ideia. Naturalmente, o problema é de todo diverso daquele mais elevado, isto é, se existe um criador e governador do universo; a isto tem sido respondido em sentido afirmativo pelos intelectos mais elevados que já existiram.

Se contudo sob o termo "religião" incluirmos a crença em agentes invisíveis ou espirituais, então o caso é completamente diferente, isto porque tal crença parece universal para as raças menos civilizadas. Tampouco é difícil compreender como é que isto acontece. Foi só as importantes faculdades da imaginação, da admiração e da curiosidade, juntamente com o poder da razão, se desenvolverem parcialmente, que o homem pretendeu naturalmente que estava já entendendo o que estava acontecendo em volta dele e procurou vagamente indagar sobre a própria existência. Conforme M`Lennan observou: "Algumas explicações dos fenômenos da vida o homem as deve ter encontrado por si só e, a julgar pela sua universalidade, parece que as hipóteses mais simples e que foram as primeiras a povoarem a mente do homem foram as seguintes: os fenômenos naturais são atribuíveis à presença - nos animais, nas plantas, nas coisas e nas forças da natureza - de certos espíritos que incitam a agir, espíritos estes que os homens estão cônscios de que possuem". Conforme mostrou Taylor, é também provável que os sonhos tenham sido os primeiros a dar origem à ideia dos espíritos, visto que os selvagens de fato não distinguem entre as impressões subjetivas e objetivas. Quando um selvagem sonha, crê que as imagens que lhe aparecem provenham de longe para se deterem diante dele; ou então: o espírito do sonhador divaga durante suas viagens e volta para casa com a lembrança daquilo que viu". Mas enquanto as faculdades da imaginação, da curiosidade, da razão, etc. não tiverem alcançado um desenvolvimento completo na mente do homem, os seus sonhos não levarão a crer nos espíritos mais do que um cão acredita.

A tendência que os selvagens possuem de imaginar que os objetos naturais e as causas são animados de essências espirituais ou viventes talvez possa ser ilustrada por um pequenos fato que certa vez presenciei: o meu cão, um animal adulto e muito sensível, num dia quente e tranquilo achava-se num prado; a uma pequena distância uma leve aragem de vez em quando movia uma sombrinha aberta; se alguém tivesse estado aí por perto o cão nem teria ligado para este detalhe. No entanto, toda vez em que a sombrinha se movia ligeiramente, o cão arreganhava os dentes e latia. Creio que deve ter perguntado, de maneira rápida e inconsciente, se o movimento sem causa aparente não estaria indicando a presença de algum estranho agente animado, e que nenhum forasteiro tinha o direito de estar no seu território.

A crença em agentes espirituais poderia facilmente levar a fé numa ou mais divindades. Com efeito, os selvagens atribuem aos espíritos as mesmas paixões, o mesmo amor pela vingança ou então as mais simples formas de justiça bem como os mesmo sentimentos que eles mesmo experimentam. Sob este aspecto parece que os habitantes da Terra do Fogo se acham numa situação intermediaria, visto que, quando o cirurgião a bordo do Beagle abateu um pato selvagem novo, York Minster exclamou na maneira mais solene: "Oh, Sr. Bynoe, muita chuva, muita neve, muito vento", e isto era evidentemente uma punição atribuível ao fato de ter desperdiçado alimento destinado aos homens. Ademais, contou como durante muito tempo se levantaram temporais e caiu muita chuva e muita neve, quando seu irmão matou "um homem mau". Contudo nunca conseguimos descobrir se os habitantes da Terra do Fogo acreditavam numa coisa igual a que nos chamados de Deus, ou se praticavam ritos religiosos, e Jimmy Button com orgulho justificável sustentava altivamente que em sua terra não campeava o espirito do mal. Esta ultima afirmativa é a mais notável, pelo fato de que nos selvagens a crença nos espíritos maus e mais espalhado do que a crença nos espíritos bons.

O sentimento da devoção religiosa é muito complexo, consistindo de amor, de uma completa submissão a um se superior elevado e misterioso, de um forte senso de dependência, de medo, de reverencia, gratidão, esperança no futuro, e talvez de outros elementos. Nenhum ser poderia experimentar uma emoção tao complexa sem alcançar nas suas faculdades intelectuais e morais pelo menos ate um certo nível moderadamente elevado. Não obstante, vemos um pálido sinal de aproximação a este estado da mente no profundo amor que um cão tem por seu dono, associado com a completa submissão, modo e talvez outros sentimentos. O comportamento que um cão tem quando volta ao seu dono e, como posso acrescentar., também o de um símio para com o seu guardo amado, depois de transcorrida uma ausência, e muito diferente daquela que externa para com os seus próprios companheiros. Nesse ultimo caso os transportes de alegria as vezes parecem se menores e o senso de paridade se revela em toda ação. O prof. Braunbach vai tao longe a ponto de sustentar que um cão considera o seu dono como um Deus.

As mesma elevadas faculdades mentais que inicialmente levaram o homem a crer em agentes espirituais invisíveis, e depois no fetiquismo, politeísmo e, finalmente, no monoteísmo, leva-lo-iam infalivelmente a varias e estranhas superstições e hábitos, ate que o seus poderes racionais ficam escassamente desenvolvidos. Causa pavor pensar em muitos dos hábitos e supersticoes - como o sacrificio de seres humanos a uma divindade sedenta de sangue, as prova do veneno e do fogo com pessoas inocentes, a magia, etc.; contudo é bom que ocasionalmente se reflita nestas supersticoes, porquanto nos mostram que preito de gratidao infinita devemos nos ao aumtno da razao, a cienca, ao conhecimento acumulado. Conforme muto bem observou Sr. J. Lubbock: "Nunca é demasiado dizer que o horrível temos de um mal desconhecido pende como uma densa nuvem sobre a vida dos selvagens e causa inibição para todo o prazer". Estas miseráveis e indiretas consequências da nossa faculdade superiores podem ser comparadas com os erros causais e ocasionais dos animais inferiores."

C. Darwin, 1871, A descendência do homem e a seleção em relação ao sexo.

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